O peixe azul

Fabrício Fernandes resgata história das pranchas Blue Marlin, sucesso na Bahia nos anos 80


Do meio para o fim dos anos 80, se você andasse pelas praias do Sesc ou de Stella Maris, em Salvador, e prestasse atenção nos surfistas, sem exagero, de dez deles, nove tinham o peixe azul na prancha. Era o auge da famosa marca Blue Marlin!

Dois paulistas que viraram baianos, Wagner e Papanel Lancellotti, no início dos anos 80, começaram a fabricar pranchas e com o seu know-how e profissionalismo conseguiram em muito pouco tempo dominar o mercado baiano. Papanel era o mago das plainas e Wagner o mestre da laminação.

Sempre trabalhando com os então famosos blocos Clark Foam e com design inovador, os foguetes fabricados por eles eram realmente sucesso absoluto.

Wagner e Papanel eram muito dedicados e profissionais. Na época não havia máquinas de shape ou catalizadores que faziam a resina secar em três minutos. Então o processo era mesmo manual, e os dois chegavam a trabalhar 16 horas por dia, de domingo a domingo, para dar conta das encomendas.

Nessa época, Wagner ouviu de Paulo Marola, legend baiano, que havia um garoto que surfava em Piatã que estava arrebentando. Wagner foi assistir a um campeonato de surf que o garoto corria e ficou impressionado com seu surf, passando assim a ser o tutor do maior surfista baiano até os dias de hoje: o campeão mundial WQS 2000, Armando Daltro. Wagner Lancellotti foi seu mentor, amigo e muitas vezes fazia o papel de irmão mais velho.

O sucesso de Mandinho alavancou a demanda da Blue Marlin, já que todos queriam ter a mesma logo da prancha daquele garoto que ganhava todos os campeonatos na Bahia.

Claro que a evolução do surf de Mandinho também fazia Wagner e Papanel evoluírem suas pranchas para adaptarem os shapes ao surf inovador do garoto. E isso ocorria com frequência, já que Wagner e Mandinho conversavam muito, passando um para o outro as impressões sobre as pranchas e o que precisava ser melhorado para que as performances de Armando continuassem a superar os limites.

Os negócios para Wagner e Papanel, como recompensa do seu esforço, fluíam muito bem, mas enquanto tiravam merecidas férias, um incêndio criminoso destruiu por completo a sua fábrica, seu patrimônio e muitas pranchas de diversos surfistas que também os procuravam para consertos.

Foi um período de tristeza e dificuldades, mas os irmãos Lancellotti, como sempre fizeram, arregaçaram as mangas e trabalharam em dobro para recuperar tudo que lhes foi tirado criminosamente, e pagando também todos aqueles que perderam suas pranchas no incêndio com Blue Marlins zeradas!

Lembro que por volta de 1986, quando eu tinha 15 anos, época em que comecei a surfar, tinha tido apenas duas pranchas usadas, e meu pai me disse que se eu passasse de ano direto ganharia uma prancha novinha! Estudei pra caramba e não pensei duas vezes quando passei: queria uma Blue Marlin!

Fui com meu pai na casa dos caras em Itapuã, conheci a fábrica, a sala de shape, e Wagner me levou nos fundos da casa dele e me mostrou um pico do lado do Farol, me dizendo que ali quebravam ondas power muito parecida com as havaianas. Claro que não acreditei. Azar o meu, perdi a oportunidade de ser um dos desbravadores do Farol de Itapuã...

Depois de algumas semanas fui buscar a Blue Marlin zerada. Lembro dessa prancha até hoje. Seis pés, rabeta round squash, quilhas azuis meio transparentes, toda branca, com o Marlin Azul no bico na frente e atrás e o nome azul nas bordas. Olhava para a prancha, olhava para os caras em uma felicidade tremenda. Corri para casa para mostrar para meus amigos, que já estavam em fila me esperando. Colei o deck da Atomic e fui para Piatã surfar.

Nunca tinha descido uma onda na parede, mas com aquela prancha foi muito fácil. Desci uma direita e logo coloquei no trilho. Dois amigos estavam entrando e viram tudo. Jamais esqueci daquela onda, da sensação de liberdade e da minha Blue Marlin. Um ano depois parti essa prancha no meio me chocando com os corais do Corrente.

Wagner e Papanel continuaram a fazer pranchas até o ano de 1992, quando decidiram mudar de ramo e abrir barracas de praia. De novo alguns incêndios os prejudicaram, mas eles sempre começaram de novo. Mesmo quando em decisão da justiça federal todas as barracas de Salvador foram derrubadas, eles não desistiram, e hoje Papanel voltou para São Paulo e Wagner administra um excelente bar e restaurante chamado Dona Eva, homenagem a sua esposa, em Stella Maris.

Wagner é um grande amigo batalhador, vencedor, e que me deixou muito feliz esses dias com um e-mail dizendo que voltou a laminar e que as pranchas Blue Marlin logo estariam de volta. A minha já sei como será: 6 pés, rabeta round squash, com o Marlin azul na frente e atrás, toda branca, nome azul nas bodas e quilha azul transparente. Igualzinha a de 28 anos atrás!

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