Undergrounds baianos

Márcio Freire relata sessão histórica em Jaws com o amigo Danilo Couto


Ao chegarmos ao cliff de Jaws na manhã do dia 18 de janeiro, a primeira impressão foi de que o mar tinha baixado. Contudo, foi somente uma impressão.

Danilo já havia dito para mim que o mar pulsaria forte ainda e, realmente, estava... Em Peahi, apenas uma dupla de tow-in surfava as direitas, mas, por algum motivo a dupla foi embora, deixando o pico sem uma alma viva.

Do cliff, não tínhamos ideia de que aquela sessão seria uma das mais intensas de nossas vidas. Num estilo bem "Mad Dogs", entramos em Jaws sem jet-ski, sem colete salva-vidas e sem uma dupla de tow-in por lá. Coisa de louco... Aquilo era o puro desejo e vontade de dois grandes amigos e big riders. Queriamos entrar naquele mar e fazer o que mais gostamos: dropar montanhas de água gigantes na remada.

Depois de descermos a trilha até a base do penhasco, fomos direto negociar a nossa entrada pelas pedras com um violento e temido quebra-coco. A entrada nas pedras era o primeiro desafio e para este desafio usamos nossa experiência e entendimento do oceano para conquistar o primeiro passo.

Um vacilo nas pedras poderia arruinar a nossa sessão e por isto fomos pacientes a ponto de esperar o momento adequado para avançar pelas pedras. Algumas vezes chegamos a avançar, mas tivemos de recuar na sequência para evitar um acidente. Levamos meia-hora para encontrar o momento exato da entrada. Com calma, atenção e uma boa leitura do oceano, conseguimos, finalmente, entrar nas águas de Peahi.
 
A remada para a região das esquerdas foi dividida em três partes. A primeira se iniciou quando entramos na água pelas pedras e remamos até o canal das direitas. Para seguir no plano era preciso ter calma e analisar bem as condições. Sabíamos que não havia ninguém por lá e tínhamos que agir de forma segura.

De lá observamos duas séries que mostraram a potência daquela onda de perto, apesar de estarmos ainda no canal. Vimos um tubo quadrado, largo, pesado e bonito de se ver. Trocamos algumas ideias naquele momento e comentamos o quanto seria mais seguro se tivéssemos um jet-ski para um eventual resgate, ou até mesmo se chegasse alguma dupla de tow-in para tanto.

Contudo, aquele não passou de um mero comentário, pois, sem medo nenhum, iniciamos a segunda parte da remada. Remamos do canal das direitas até o canal das esquerdas. Demos uma volta bem aberta por fora da região das ondas para garantia de que nao iríamos ser pegos por alguma série de ondas.

Chegando lá, mais uma vez paramos para observar as ondas. Desta vez, as ondas rolavam para a esquerda e se mostravam enormes. Observamos por algum tempo e demos sequência à terceira parte da remada que seria a entrada na região das ondas.

 Digo na região das ondas e não no pico de propósito. Infelizmente, lá não tem um pico definido como Waimea, Mavericks ou Todos os Santos...

Ao chegarmos à região das morras, não demorou muito para Danilo remar em sua primeira onda. Aquela era uma onda gigante que proporcionou um momento crítico com uma vaca sinistra que, com certeza, o abalou e me deixou preocupado. Apenas o vi ficando de pé em sua prancha naquele absurdo de onda. Segundos depois, quando estava passando a onda seguinte, olhei para trás e vi a sua prancha de forma vertical, com a parte do meio da prancha até a rabeta dentro da água e do meio da prancha até o bico fora da água.

Foi uma visão rápida que mostrou que um dos meus melhores amigos ainda estava embaixo da água, numa situação perigosíssima, e, o pior, perto de receber a onda seguinte ainda embaixo da água. Não me desesperei, mas fiquei muito preocupado. Mantive o meu foco no oceano pra não vacilar com a próxima série, além de manter o pensamento positivo para que Danilo se sobressaísse daquela situação a salvo e sem ferimentos.
 
Apesar do risco de partir, a prancha nova que tinha emprestado para Danilo perdeu o seu valor. O que mais importava para mim era ver o meu amigo bem. Os minutos foram passando e, finalmente, avistei bem longe, nas pedras, o Danilo. Na verdade, somente avistei a prancha, que tem cor amarela, porque estava muito de longe. Do outside de Peahi, numa visao distante, veio uma sensação boa por saber que Danilo estava bem.
      
Nervosismo, tremedeira, falta de foco, pensamento negativo, vontade de ir ao banheiro e medo não podem fazer parte dos momentos que antecedem uma sessão de ondas grandes.

Sozinho na região das ondas, viajava em meus pensamentos e refletia sobre a sessão que pra mim ainda não tinha nem começado. Uma das coisas que passou pela minha cabeça foi a respeito de Danilo. Conheço Danilo desde época de moleque e tinha a certeza de que a prancha que ele estava usando não quebrou e ele não deveria ter se machucado.

A sua volta seria certa. Depois de surfar a minha primeira morra e retornar à região das ondas, vi Danilo do outro lado remando pelo canal das direitas. Um guerreiro dos mares, da tropa de elite do mundo no que diz respeito a surfar ondas gigantes, nunca desiste. Isso que é um surfista casca-grossa de arrepiar. Quando nos vimos, acenamos um para o outro, gritando e sorrindo de alegria.

Minha primeira onda não foi das maiores, mas me adicionou mais confiança e coragem. Logo depois de ter reencontrado Danilo, dropei minha segunda onda, que foi bem maior que a primeira. Como minhas duas primeiras ondas foram concretizadas e surfadas com muito prazer, passei para outro nível de coragem. Comecei a me sentir ainda mais solto na região das morras.

Danilo, já recuperado da vaca sinistra, remou em sua segunda bomba e completou um drop perfeito para garantir o seu prazer e diversão.
 
Até então, cada um havia surfado duas ondas e delirávamos de tanta emoção, prazer, sintonia com o mar e ondas grandes. Tudo indo perfeito até então, contudo, as coisas mudaram depois da minha terceira tentativa. Remei pra cima da onda vendo aquela montanha oceânica na superfície do mar já cobrindo por completo o horizonte e vindo em minha direção.

Remei forte pra cima dela e, visualizando o lugar exato pra parar de remar, fiz os movimentos certos e com cautela. Parei no lugar exato. Rapidamente, sentei na prancha já virando e direcionando o bico para o início do trajeto que acreditava ser o correto para um drop perfeito. Ao ficar de pé na prancha, deslizei até a base com uma velocidade incrível.

O drop foi longo, intenso e me passou sensação que me fizeram entender, naquele momento, porque eu gosto de surfar em dias como este. Ao chegar à base, encontrei o momento certo de cavar. Com toda aquela velocidade, fiz minha base dobrando o joelho, agachando o corpo e pondo a mão esquerda  para me dar suporte e segurança na virada.

Tentei passar a seção de qualquer jeito para tentar fazer a onda por completo e alcançar o canal, porém isto não foi possível. Não passei a seção e fui puxado pela onda sem piedade. Já surfei várias vezes em Jaws e passei por diferentes situações, porém esta me fez ficar abalado. Sendo sugado pela turbulência da onda e me sentindo à mercê do oceano, naquele momento me passou pela cabeça o problema que tive recentemente com meu joelho.

Havia ficado de molho por mais de um mês sem treinar e, antes desta sessão, só havia surfado algumas vezes. Ou seja, eu não estava em completa forma. Pra manter o joelho firme, usava uma joelheira com metal dos lados e enrolada com silver tape. Depois de algumas chacoalhadas embaixo d’água, consegui retornar à superficie, dei uma inspirada e, para minha surpresa, fui sugado pra baixo de novo por poucos segundos.

Depois de retornar à superficie de novo, puxei minha gunzeira pra ter o apoio e me preparar para a próxima. A segunda foi firme, forte e pior que a primeira. Neste segundo momento, submerso pelo bruto oceano, me sentia virando e rodando para todos os lados. Depois de alguns segundos de sofrimento e a turbulência passando, segurei na cordinha de quatro metros de comprimento que me conectava com a prancha pra saber onde estava a superfície.

Comecei a puxar a cordinha e em seguida a nadar subindo em direção à superfície. Sempre se deve manter a calma, ter cabeça e experiência para poder se sair bem em momentos dificeis como este. Finalmente, chegando em cima pude respirar um pouco e me preparar para a próxima. Jamais esperava ter uma terceira onda com potência. Essa terceira me arrasou, arrastando o meu corpo numa velocidade absurda.

Senti a cordinha começando a enrolar as minha pernas e rapidamente consegui me sair desta. Fui levado para cima, mas não para a superfície. Achei que poderia respirar ar, e até tentei, pois a sede de oxigênio era muita, porém terminei engolindo água salgada.
 
Em alguns segundos, com tudo aquilo acontecendo, me senti em uma paz eterna. Sabia que já estava num estado perto de apagar. Lá dentro de mim veio aquela vontade de sair bem, e com algumas braçadas mais, consegui emergir e inspirar de novo algum oxigênio. Nunca pensei em ter uma terceira onda pior que a segunda.

No shore breack de Peahi, tudo pode acontecer. Já estava exausto e sem energia nenhuma. Estava sendo empurrado pelo mar para esta segunda baía, onde as pedras são menores. Recebi mais espuma e depois puxei a prancha e peguei uma espuma em direção à segunda baía. Deitado na prancha, completamente acabado e deslizando naquela espuma, só esperava chegar lá.

Fui muito louco, pois não aguentava mais nada. Na espuma, via as pedras se aproximando e ali estava o meu porto seguro. Nem tentei salvar a prancha das pedras. Deitado na prancha e trazido pela espuma, fui direto passando por cima das pedras e sentindo-as triturando as quilhas e o fundo da minha gunzeira feita pelo meu shaper Sean Ordonez.

Quando terminei de deslizar na espuma, estava completamente em cima das pedras e ainda deitado na prancha. Olhei para o penhasco e para todos os lados. Por segundos já nas pedras, minha visão mudou. Por segundos vi tudo ficando diferente.

Nunca havia sentido isto. Na minha visão, foi ficando tudo meio que amarelado, mas bem rápido isso passou. Sabia que aquela tinha sido uma das sessões do limiar entre a vida a morte. Ainda sem energia, comecei a andar pelas pedras com a minha prancha destruída. Naquele momento, vi Danilo pegando sua terceira onda, que foi muito grande e balançada. Com a base sólida de um verdadeiro big rider, ele fez a onda até o final, saindo sem problemas pela segunda baía.

Nos encontramos, apertamos as mãos e subimos a trilha. Já em cima do penhasco, colocamos a prancha em cima do meu carrinho velho e fomos comer num restaurante local bem simples para recarregar as energias perdidas nos caldos.

Quando estávamos comendo e falando a respeito da sessão, Sean Lopes entrou no restaurante para nos cumprimentar. Surfista local, sobrinho de Gerry Lopes e nosso conhecido, ele veio entusiasmado e admirado com o nosso feito. Apertou nossas mãos e nos deu os parabéns. Ele falou que viu tudo de cima do penhasco, e que aquela havi sido a sessão da temporada. Para mim e para Danilo, que somos verdadeiros surfistas de alma, vão ficar na memória as morras surfadas e toda a experiência vivenciada.

Nota da redação A insanidade da dupla colocou os baianos na briga pelo prêmio North Shore Big Wave Challenge, organizado pelo big rider havaiano Evan Valiere. O vencedor leva um quadro produzido pelo artista Steven Valiere (pai de Evan) no valor de US$ 10 mil.
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