Clássico do longboard
Peterson Sitônio entrevista o legend baiano Bernardo Mussi
Aos 50 anos de idade, o baiano Bernardo Mussi, mais conhecido como Bonga, é um daqueles tipos inquietos. Começou a surfar no tradicional bairro da Barra, onde adquiriu o gosto pelas ondas grandes e tubulares. Ainda jovem, migrou para o longboard e foi um dos primeiros talentos da categoria no Estado. Campeão brasileiro em 1993, Bonga continua na ativa e é presença certa quando o swell aparece. Foi um dos fundadores do Clube Baiano de Longboard e mais recentemente, engajado na questão ambiental, criou o projeto Fundo da Folia, onde realiza mergulhos nas praias da região da Barra, no período do Carnaval e tenta chamar a atenção da sociedade e das autoridades para o descaso com o lixo que é jogado e acumulado no mar.
Peterson Sitônio - Quando começou a surfar? O que te fez ter o primeiro contato com o mar?
Bernardo Mussi - Nasci em Petrópolis, no Rio de Janeiro, em 1966. Aos 5 anos de idade, em 1970, vim morar na Barra, em Salvador. Desde então meu contato com o mar foi muito frequente, pois tínhamos na praia do Porto da Barra a melhor opção de lazer da época. Lá comecei a nadar, mergulhar e me apaixonar pelo oceano. Em 1977, aos 11 anos de idade, comecei a surfar com uma prancha de fibra de um amigo pelo Farol e Barravento. Antes, porém, já havia ficado em pé numa prancha de isopor, mas gosto de ter o ano de 77 como referência, pois o contato com uma prancha de verdade foi muito marcante.
PS - Quando descobriu o longboard? O que te fez continuar nessa modalidade?
BM - Acho que em 1991 quando montamos a Associação Baiana de Surf e comecei a participar da categoria no circuito estadual para fazer número e incentivar a modalidade. Pela facilidade que sempre tive em surfar com pranchas maiores, me adaptei rapidamente, comecei a me destacar em alguns eventos e a ficar cada vez mais instigado. Fizemos muitas viagens pelo Nordeste com a equipe da Bahia de surf e ganhei alguns campeonatos numa ótima parceria com aquele que considero um dos maiores atletas do país, o amigo Ricardo Abubakir. Viajamos também para o Sul e Sudeste, onde fizemos ótimos resultados. Até que ganhei o campeonato Brasileiro Amador no meio da Barra em condições extremas no ano de 93. Este foi um momento marcante para mim e creio, ajudou a incentivar muitos outros atletas na Bahia. Eu e o Ricardo naquela época rodamos o país competindo. Ele foi bicampeão nordestino e eu, além do campeonato brasileiro que ganhei, fiz pódios em competições profissionais no Rio, São Paulo e Rio Grande do Sul. Colocamos a Bahia em evidência e logo depois apareceu Olimpinho, ganhando tudo pelo mundo afora, porém, já residindo no Rio de Janeiro. Acho que os resultados nas competições e o gosto natural que sempre tive para um surf mais alinhado me prenderam ao mundo do longboard.
PS - Qual sua prancha ideal? Qual seu quiver? Você que já vem de outras épocas, hoje em dia tem quilha e pranchas de tudo que é tamanho, formas e cores. Você acha que isso tudo realmente faz diferença ou é só um lance comercial?
BM – Gosto de pranchas básicas, sem muitas inovações. Já fui mais instigado pelos detalhes, medidas, configurações de quilhas e fundos, mas pela quantidade de pranchas diferentes que já surfei, vi que muitas vezes você tem um equipamento de qualidade, cheio de detalhes inovadores e modernos, que não funciona muito bem para seu jeito de surfar. Por outro lado, aquela que parece ruim, simples, remendada e mais antiquada, é a do pé, a que você se dá bem. Tenho um lance comigo que é o apego sentimental às pranchas que carregam alguma história em momentos inesquecíveis na minha vida. Não sou de trocar minhas pranchas, apenas quando quebram ao meio e não consigo mais recuperar. Atualmente tenho uma relíquia 9´9 original dos anos 60, que trouxe da Califórnia, uma 9´6 Infinity clássica também californiana, uma 9´1 Claudio Pastor que foi meu shaper por muitos anos, e uma Dynamic que era de um sobrinho meu. Estas duas que são as que surfo no dia a dia, tem mais de 10 anos e já foram remendadas, entretanto, são as que tem resistido às ondas cavadas do Barravento e Pescador, picos que adoro e são verdadeiros moedores de longboard. Nestes 10 anos já tive duas outras pranchas que quebraram ao meio e não serviram mais. Uma coisa aprendi, que jamais devo ficar apenas com um longboard, pois se o swell estiver imperdível e ela quebrar, o que é bem fácil, você vai ficar pirado. Hoje me importa mais ter pranchas simples e resistentes, mas acho legal que o mercado desenvolva inovações e instigue a comercialização de novos produtos. Faz bem para o mercado, gera negócios e novas oportunidades profissionais. O que me preocupa é a questão ambiental, da sustentabilidade. O surf não pode ficar cego pela grana e esquecer sua essência. Por isso, além de pranchas simples, agora quero entrar no mundo das pranchas ecologicamente corretas. Gostaria muito de ter uma para incentivar o uso na Bahia.
PS - Quem era seu shaper na época? É o mesmo de hoje? Me conta mais, como era o longboard na sua época? O que acha que mudou com relação a hoje?
BM – Meu primeiro longboard foi feito por Carlão Moraes, um dos caras mais pilhados pelo surf que conheço e um grande amigo. Foi com ele que iniciei minha caminhada na modalidade. Depois de quebrar ao meio duas vezes e não haver mais jeito para consertar, fiz uma com Maurício Abubakir, um dos maiores surfistas da Bahia e também super amigo. Com essa prancha ganhei o Brasileiro no Rio de Janeiro. Até hoje não sei como ela não quebrou naquele mar. Ela ficou toda trincada de cima abaixo, mas não partiu. Naquela época as pranchas de longboard já estavam sofrendo um processo de transformação para atender um surf mais progressivo. Estavam afinando, estreitando, ganhando mais curvas e diminuindo ao limite dos 9´. Logo as competições adotaram o critério 50% clássico e 50% radical no julgamento. Alguns surfistas profissionais de pranchinha começaram a surfar de longboard e a impor um estilo mais radical com batidas e rasgadas no crítico das ondas. A linha foi quebrada e as pranchas seguiram a tendência. Chegamos a falar que os longboards estavam se tornando pranchinhas de 9´. Depois do campeonato Brasileiro no Rio de Janeiro, passei a surfar com as pranchas de Claudio Pastor por muitos anos. Ele virou um grande amigo. Discutimos muito sobre shape, tendências e as percepções que tinha ao surfar com suas pranchas. Era legal, pois na equipe haviam vários longboarders campeões, inclusive o próprio. Naquele tempo viajei muito pelo Rio e São Paulo competindo e vendo as inovações, mas sabia que uma hora haveria um ajuste. O longboard não era aquilo que estávamos vivendo. O surf clássico, a essência, a origem, a plástica deveria prevalecer. Acho que é a real hoje em dia.
PS - Fiquei sabendo que você chegou a ter um programa de rádio na década de 80. Conte mais!
BM – Os anos 80 foram muito especial. O surf começou a se profissionalizar de verdade naquela época. Para se ter uma ideia, no final daquela década, tínhamos em Salvador várias associações de surf atuando, organizando eventos, com suas comissões técnicas trabalhando, movimentando o mercado e o nível competitivo dos atletas. Participei de algumas delas e ajudei a produzir, organizar e a trabalhar como juiz ou locutor de muitos eventos aqui, inclusive nacionais de surf e bodyboard. Ao mesmo tempo, fazia junto com Marcinha Brandão, grande amiga, o Jornal Qual o Lance?. De 88 a 91 fiz o programa Surf News FM e de 90 a 91 o Surf News TV. Antes competia de pranchinha em alguns campeonatos locais e a partir de 91 passei a competir de longboard. Ou seja, dirigia associações, trabalhava nos staffs técnicos, fazia rádio, TV, jornal e competia. Para completar, em 94 montei a ACASURF junto com os amigos Zé Augusto e Darius, a primeira escolinha de surf de Salvador, que passou a ser uma loja poucos anos depois. Chegamos a fabricar alguns produtos. A ACASURF gerou o Clube Baiano de Longboard, um dos maiores movimentos da modalidade no Brasil, que reunia uma média de 100 atletas em cada competição. Era uma grande festa entre competidores profissionais, iniciantes, surf clássico e muitas outras categorias por idade. Foi o boom do longboard na Bahia. Vinha muita gente de outros estados. Se não esqueci de nada, acho que só faltei ser fabricante de pranchas.
PS - Quais seus principais títulos e qual ficou marcado para você?
BM – Ganhei alguns títulos baianos, alguns campeonatos pelo Nordeste e fiz finais em eventos profissionais no Rio, São Paulo e Rio Grande do Sul. Mas, sem dúvida, o campeonato Brasileiro Amador de 93 no Rio de Janeiro foi o que mais marcou. O mar estava muito grande, pesado e difícil. Só eu consegui entrar no mar e pegar duas ondas. Os outros competidores ficaram disputando nas espumas. Detalhe que a prancha já estava trincada e não quebrou. Confesso, fiquei tenso lá fora sem ver o palanque direito, sem ouvir nada, sozinho, tempo de frente fria, água gelada e ondas fechando. Foi muito emocionante para mim. Jamais pensei que chegaria tão longe. Foi uma surpresa geral e por conta da ousadia, ganhei o respeito de muita gente e fiquei com certa fama de pegar ondas difíceis. Tanto que no ano seguinte fui para o brasileiro no mesmo lugar e perdi de cara em um mar muito pequeno. Fiquei triste e decepcionado, mas haveria uma seletiva no outro dia para disputar uma vaga no longboard para compor o time brasileiro que disputaria o mundial da ISA por equipes, meses depois ali mesmo no meio da Barra. Os quatro finalistas daquele campeonato que estava rolando se juntariam a mais dois convidados para uma “melhor de três”. No dia da final o mar ficou muito grande e quando a equipe baiana já se arrumava para ir embora, veio o anuncio que eu teria uma vaga. A equipe vibrou, era o único baiano com chances de ocupar uma vaga no time. A seletiva aconteceu logo no dia seguinte, numa segunda feira, com as atenções da mídia todas voltadas para o evento que definiria todo o time brasileiro. Quando cheguei na praia pela manhã não acreditei. O mar estava grande, difícil e o dia estava lindo. Foram 3 competições entre nós seis e acabei ganhando as três. Na última onda da última bateria, a prancha que já estava trincada, partiu ao meio. Saí com dois pedaços e a vaga para o mundial. Mais uma surpresa no Rio de Janeiro. Meses depois acabei o mundial na 7ª colocação provando que eu tinha certa facilidade pelas ondas mais pesadas. O evento começou com ondas grandes e foi diminuindo bastante. Perdi na semifinal em ondas muito pequenas, mas valeu, foi uma experiência incrível.
PS - Falando em campeonato, lembro que o último campeonato de longboard de expressão em Salvador foi em 2008, o Pena Longboard Classic, na praia de Jaguaribe. Época quando conheci Phil Rajzman, Carlos Bahia, Picuruta, entre outros. O que acha que falta para voltarmos a ter competições de expressão aqui na Bahia?
BM – Acho que precisamos de gente com vontade, espírito de liderança e credibilidade para conduzir este processo. Acredito muito no trabalho simples, de base, sem muitas pretensões comerciais ou midiáticas para começar. Depois que o Clube Baiano de Longboard saiu de cena, por entender que tinha cumprido sua missão, houve um movimento para dar sequencia ao trabalho que estava pronto, no trilho e com muito potencial para dar bons e novos frutos. Acho que faltou um pouco de experiência da galera que assumiu esta responsabilidade, mas temos todas as condições de retomar o melhor momento, já que o CBL ficou como uma grande referência de sucesso.
PS - Você tem algum no longboard? Sempre tem aquele que a gente olha a linha do surf, toma como referência e cai pro mar. Conte pra gente quem te inspirava.
BM – Acho que o Joel Tudor é um cara que se destaca entre todos os outros que me chamam a atenção. É um cara diferente, clássico, preocupado com a essência da modalidade. O cara é um purista e com o tempo, e a tendência progressiva nos julgamentos, ele foi saindo da cena competitiva. Talvez pela proximidade, parceria e disputas sempre acirradas, focava muito no surf do Ricardo Abubakir. O longboard é muito versátil, muita gente com estilos e abordagens diferentes no jeito de surfar. Gosto de muita gente. Não sei dizer quem me inspirou. Pergunta difícil.
PS - O que você recomenda para uma pessoa que iniciou hoje nessa modalidade e quer ter uma evolução rápida no mar? Qual o pico? Qual a dica?
BM – Recomendo sempre o surf com segurança e respeito às pessoas e ao mar. Vale muito prestar atenção nas outras pessoas surfando, ver vídeos, se manter saudável e saber que o surf é muito mais que um esporte ou uma simples atividade de lazer. O surf mexe com nossa cabeça no bom sentido. É intenso! Por isso muito do aprendizado se dá naturalmente pela conjunção das dicas que se pode achar em qualquer site, manual, escolinha ou na ajuda de amigos mais experientes, com esta emoção que mexe com nossa sensibilidade a tal ponto de ficarmos cada vez mais instigados pelas ondas. É seguir curtindo, respeitando alguns limites, quebrando outros e buscando prazer e realização ao estar envolvido com sua prancha no mar.
PS - Olha, vou assumir viu. Entrevistar uma lenda não é algo normal pra mim, faltam perguntas, questionamentos e palavras. Só faço questão de admirar e saber mais. Gostaria de saber algum fato que marcou sua história no surf. Conte um positivo e um negativo.
BM – Não sou uma lenda, ainda faltam muitas realizações para que após deixar este mundo, possa ser considerado uma (risos). Me considero um cara sonhador, idealista e realizador. Fiz muitas coisas no surf e pelo surf, movido por uma paixão difícil de explicar. Me tornei um cara melhor e compreendi parte do significado da vida pela intensidade com que vivi essa paixão. Não sei dizer qual o momento mais marcante. Sei dizer que uma das coisas mais sensacionais que aconteceram na minha vida foi ter o privilégio de conhecer e entrar no misterioso mundo do surf ainda criança. Eu sempre levei esta marca comigo em todas as outras atividades. Na escola, nas duas faculdades que fiz (Educação Física e Direito), na minha atual profissão, em família, entre amigos e por onde quer que eu esteja. Faço questão de ser um surfista! Gosto de falar, tenho orgulho, me sinto bem. O surf me deixou mais solidário, humilde, alegre, saudável, otimista e responsável pelo meu papel frente a natureza. Aliás, tenho esta como minha religião e ao longo da vida fiz muitas ações pelo meio ambientes através do surf. E não parei. Atualmente me dedico ao projeto Fundo da Folia e ao Parque Marinho da Barra. Projetos com o DNA do surf que deixarão um legado excelente para Salvador. Quero dizer que continuo embalado por meus sonhos, acreditando e os realizando quando possível. Sei que posso fazer muito mais para tentar retribuir um pouco do que ganhei com o surf. É uma forma de agradecimento. É uma forma de me manter ativo, instigado e com boas energias. Talvez uma desculpa para continuar surfando eternamente.